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A FORÇA DA ESPERANÇA

 

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© J. B. Melo

© A FORÇA DA ESPERANÇA

 

ISBN papel: 978-84-686-4521-6

ISBN epub: 978-84-686-4524-7


N.D.L: 416630/16


Impresso em Portugal

Editado por Bubok Publishing S.L.


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A Força da Esperança é uma obra de ficção,
baseada em factos reais.

 

 

 

 

 

 

 

Peçam, que Deus vos dará, procurem, que hão-de encontrar, batam à porta e ela há-de abrir-se, pois o que pede, recebe, o que procura, encontra, e a quem bate, a porta se abrirá.

 

Lucas XI, 9-10

 

 

 

 

 

 

 

Agradecimentos

 

 

Reconhecimento e gratidão à minha mulher e filha
pelo apoio e contributos.

 

 

 

 

 

Prólogo

 

 

No fim daquela manhã de Verão, Victor, com apenas onze anos de idade, recebeu uma inesperada notícia, «estava a desenvolver uma escoliose idiopática grave».

Um ano depois foi submetido a uma cirurgia de correção que, por negligência, resultou numa paraplegia e dependência de ajuda de terceira pessoa, para muitas das atividades da sua vida diária. Em pouco tempo viu todos os seus sonhos de criança desmoronarem-se. Agarrado agora a uma cadeira de rodas, vivendo cada dia numa realidade cruel. Na sua luta contra aquela adversidade e, quando já não restavam mais forças, eis que teve um inesperado e surpreendente encontro no parque com uma estranha pessoa que tomou conta dos seus pensamentos, mudando radicalmente a sua atitude para com a vida. A partir dali surpreendeu tudo e todos, desenvolvendo uma luta sem tréguas contra a adversidade, vindo a transformar-se num herói.

Vinte anos depois, não só ultrapassou as suas limitações físicas, como se elevou ao nível de um vencedor nato. Como advogado, desenvolveu uma Sociedade que ajudara a criar, elevando-a ao estrelato das empresas de grande sucesso.

Através deste livro, descubra a força daquele rapazinho de onze anos, que um dia foi atingido por uma adversidade brutal, conseguindo ultrapassar as páginas negras da sua vida!

 

 

 

 

 

 

 

PARTE I

 

 

 

 

 

Na Flor da Vida

 

 

A montanha e aldeia implantada na sua encosta despertaram cobertas por um manto branco. O Inverno naquele ano estava a prolongar-se mais do que habitual o que constituía para Inês, já no oitavo mês de gestação, uma dificuldade adicional ao seu quotidiano. Um estridente sinal do despertador marcou as sete da manhã no seu quarto. Acendeu a luz, eram horas de começar um novo dia. Pelas nove tinha consulta de ginecologia na cidade. A deslocação até lá levaria algum tempo, pois tinha de vencer mais de sessenta quilómetros de autoestrada com um piso escorregadio, pelo que a prudência recomendava uso de velocidade reduzida. Tinha de se apressar. O boletim meteorológico de véspera anunciara como provável um forte nevão para a região, pelo que mandou aplicar correntes nos pneus do carro e preparou os agasalhos de Pedro, seu filho, agora com sete anos, frequentando o ensino básico. O colégio ficava a curta distância de casa, pouco mais de um quilómetro. Habitualmente era Henrique, seu marido, que o levava ao colégio, mas naquele dia não era possível. Uma mensagem em plena noite convocou todos os médicos disponíveis para uma emergência no Hospital. Henrique desempenhava funções de ortopedista e estava entre as especialidades mais requeridas, para fazer frente a uma cadeia de acidentes ocorridos precisamente na autoestrada que atravessa a região. Inês iria pois chegar ao Laboratório onde trabalha, como bióloga, um pouco mais tarde.

Os momentos que antecedem uma consulta são vividos por Inês com alguma ansiedade. Embora os exames sejam rotineiros, pois a bebé está a crescer dentro da normalidade, só fica liberta da tensão quando observa os sinais de vitalidade da criança através do monitor. Então aqueles momentos de ansiedade convertem-se em emoção adicional, trazendo-lhe sorrisos e felicidade. Este comportamento face à bebé contrasta com a sua atitude lógica e racional, que todos lhe conhecem desde a juventude.

Um sinal de mensagem entrada no telemóvel obrigou Inês a interromper momentaneamente a ajuda no vestir de Pedro. Henrique confirmava a sua indisponibilidade para a acompanhar na consulta, «A situação na Urgência está muito congestionada. Esta mensagem só foi possível graças a uma saída momentânea do bloco. Logo que possa dar-te-ei mais notícias».

Pedro alimentava ainda algumas esperanças.

- O pai vem a tempo de me levar ao colégio?

- Receio bem que não. Neste momento nem sequer sabe quando regressa a casa.

- O acidente foi assim tão grave?

- O teu pai não deu pormenores, mas a avaliar pelas notícias que ouvi há momentos na rádio, tudo indica ter tido contornos de gravidade. Falavam em dois mortos e mais de duas dezenas de feridos.

Não era a primeira vez que Pedro era confrontado com ausências repentinas do pai, embora compreendesse as razões profissionais e humanitárias, tinha nestas uma atitude de reação negativa.

- Que chatice! E não havia outro médico, mãe?!

- Estás a ser muito egoísta.

- Não é por nada, mas logo hoje que fiquei de apresentar o pai à Naná!

- Quem é a Naná?!

- Ora, a minha namorada!...

- Namorada?! Só tens palmo e meio e já de namorada?!

- Mãe - deixa! Vê-se que não percebes nada destas coisas!...

- Há, sim! Então sou eu que não percebo dessas coisas! Muito bem!

Pedro olhou para o rosto de espanto de sua mãe e como não encontrou palavras para rebater a sua afirmação, encolheu os ombros em sinal de condescendência.

- Vá lá, Pedro, temos de nos apressar! Estou atrasada e o mau tempo não está a ajudar. Veste o agasalho e vai para junto do carro, já vou ter contigo.

Pedro, um pouco contrariado, lá fez o que sua mãe lhe ordenara.

A curta distância até à escola em condições normais é realizada em poucos minutos, mas naquele dia um percalço desusado multiplicou muitas vezes esse tempo. O Senhor João contrariando o tempo e toda a lógica tinha decidido levar o seu rebanho estrada fora. Assim, depois de Inês ter tirado o carro da garagem e percorrido algumas dezenas de metros, foi confrontada numa curva com aquela cena, já sua conhecida mas não esperada naquele dia. Apercebendo-se de que a situação poderia arrastar-se por algum tempo, decidiu parar o carro e ir falar com o pastor.

- Bom dia Senhor João, nem mesmo a neve o faz parar!

- É por isso mesmo, Senhora Doutora!

- Como assim?!

- Já não tenho o que dar às minhas ovelhas e o pasto não vai estar disponível nos campos tão cedo.

-?

- Combinei com o meu compadre Zé Manel levar as minhas meninas, até ao seu curral. Felizmente foi mais previdente do que eu.

- O Senhor João ainda vai ocupar a estrada por muito tempo?

- Não se preocupe, Senhora Doutora, é já ali à frente. Já deixo a Senhora passar.

Enquanto Inês se despedia e regressava ao carro, teve tempo para ouvir o monólogo do pastor com as suas meninas: – «Vamos lá, despachem-se, a Senhora Doutora quer passar! Não vêm?!».

Desde pequena que Inês se habituara àquelas cenas transversais de pastorícia e agricultura na sua aldeia. A expressão mais pura da natureza sempre influenciou a sua vida. Em nenhum outro lugar como ali, sentia nessa comunhão uma radiante alegria, transbordante de sorrisos e felicidade, sentidos nos rostos daquela gente. Talvez por isso, após ter concluído o curso e mais tarde casado, fixou ali a sua principal residência. Na cidade manteve o apartamento que lhe serviu de logística, em todo o tempo de faculdade e agora como apoio ao casal, mas sempre como segunda casa.

Minutos depois o pastor lá conseguiu desobstruir a estrada, permitindo que Inês passasse com o carro, chegando ao colégio sem mais atrasos. Na despedida, Pedro, uma vez mais quis confirmar quem o iria buscar ao final do dia.

- Mãe, o pai logo já pode vir buscar-me?

- Não te preocupes, um de nós estará aqui para te levar.

- Pois, mas assim não sei o que dizer à Naná!

- Não digas nada! Um beijo. Até logo!

- Que maçada!

Inês despediu-se de Pedro com um sorriso nos lábios, enquanto dialogava consigo própria, intrigada com a atitude de seu filho: E, esta, já com namorada! Não me recordo de lhe ter ensinado nada disto!...

Alguns quilómetros à frente, em plena autoestrada, um painel eletrónico advertia para uma condução moderada, informando da aproximação de zona com acidentes. As viaturas que seguiam à sua frente levavam os faróis de intermitência ligados, em sinal de marcha lenta por precaução. Pela rádio as notícias repetiam as ocorrências dessa manhã, dando conta de que as faixas da autoestrada, em sentido contrário ao que Inês seguia, se mantinham obstruídas pelas viaturas acidentadas. Um pouco mais à frente e a certa distância surgiam os primeiros sinais da zona de acidentes referida. Com o aproximar do local passava a ser visível o aparato de destruição. Veículos destruídos um pouco por todo o lado. Alguns ainda se encontravam sobrepostos, mais parecendo um cemitério de viaturas. Numa azáfama alguns bombeiros procuravam com carros grua desimpedir o local enquanto outros procediam à limpeza dos resíduos depositados na estrada. Os polícias apoiados pelos carros patrulha e sinalética completavam o cenário ainda dantesco, evidenciando a dimensão dos embates em cadeia que ali tiveram lugar. Na faixa de Inês, um polícia procurava convencer os condutores a seguirem sem grandes abrandamentos, evitando assim potenciais acidentes por distração resultantes da natural curiosidade dos condutores. Nos quilómetros que se seguiram era impressionante a extensão de viaturas paradas no sentido dos acidentes ocorridos. Mais à frente operadores de trânsito montavam sinalização para divisão de faixas e sentidos, preparando deste modo a desobstrução do bloqueio produzido. Em outras ocasiões Inês já tinha sido confrontada com acidentes do género, mas que se recordasse, nenhum com esta dimensão de tragédia. Desde sempre se habituara a ter redobrada prudência na condução quando as condições do tempo eram adversas.

As autoestradas são, nos tempos modernos, vias insubstituíveis de circulação automóvel. Os acidentes só podem ser evitados com o contributo de todas as variáveis que neles participam: quer pelo reforço de prudência dos condutores; quer pela melhoria dos pisos; condições de segurança das viaturas; meios auxiliares de apoio tecnológico à condução; quer pela sinalização e controlo das vias. Na medida em que condutores e máquinas tenham um controlo efetivo sobre os múltiplos perigos que podem surgir na condução, poderá evitar-se muitas perdas de vida.

Um novo sinal de entrada de mensagem no telemóvel alertava Inês para a necessidade de uma paragem da viatura para ler o seu conteúdo. Decorridos alguns minutos, à sua frente, surgiu a sinalização de aproximação de zona de serviço, a menos de dois quilómetros, o que tranquilizou a condutora.

Apesar das muitas atualizações tecnológicas em telemóveis a que Inês aderiu, ainda não encontrou satisfação para uma velha aspiração sua que alimenta há já algum tempo - a de poder aceder a todas as funções do telemóvel por comando de voz, principalmente à leitura de mensagens. Quando um dia esta opção finalmente estiver disponível não precisará de parar o automóvel como desta vez, para dela tomar conhecimento.

As entradas na cidade, àquela hora, eram em geral problemáticas, mas naquele dia a fluidez do trânsito permitiu que fosse pontual. Quando Inês chegou à cidade, tinha já uma nova mensagem, desta vez, a confirmar a presença de Henrique à hora marcada no consultório de ginecologia, para a acompanhar na consulta. Pouco depois Inês estacionou o carro à porta da clínica. Henrique já a esperava.

- Estás aqui há muito tempo?

- Acabo de chegar! O Pedro ficou bem?!

- Sim, mas um pouco aborrecido. Sabes que ele já tem namorada?!

- Sim, claro!

- Como assim?! Um miúdo e já de namorada. Não te parece muito precoce?

- Coisas de homens! Sai ao pai, com nove anos já namoriscava uma prima da mesma idade. Mas estou de acordo contigo, o Pedro ainda não tem idade para essas aventuras.

- Ainda bem que reconheces!

A chegada à receção da clínica permitiu que a conversa sobre namoros ficasse por ali. A preocupação de ambos era agora dirigida para a esperada filha. No consultório a confirmação da boa saúde da futura bebé era motivo de conversa numa outra direção.

- Temos pouco mais de um mês para decidir sobre o nome de nossa filha – disse Inês.

- De todos os nomes que temos falado, começo a simpatizar mais com o de Iris, mas o melhor será perguntares a ela, não te parece?

- Nesta altura não é muito fácil!

- Se aplicares a minha teoria e falares com ela, vais ver que acaba por te confirmar a sua decisão.

- Essa de tomar opções através de pontapés na barriga, não me parece uma grande ideia.

- Nunca é tarde de mais para iniciar novas experiências de comunicação entre os seres, não te parece?

- Por muito que me queiras convencer, não estou a ver como um ser ainda uterino consegue comunicar com a mãe!

- Através dos tempos muitos outros desafios foram vencidos, esse é só mais um!…

Inês não estava com disposição para continuar naquela via do imaginário, pelo que preferiu o lado prático da questão.

- Por mim está bem! A bebé fica com o nome Iris.

Aquela caraterística prática de sua mulher era para Henrique facilitadora da vida a dois. Talvez por isso sempre que Inês tardava numa decisão, isso significava para ele que o assunto estava ainda pouco amadurecido, pelo que o melhor era deixar para outra oportunidade. A convivência entre eles passava assim por essa admirável sintonia de vontades, oportunidades e respeito mútuo. Talvez por isso o diálogo tinha também momentos de silêncio expressivo. Com o passar dos anos esta sintonia foi sendo cada vez mais harmoniosa ajudando a manter uma relação duradoura.

- Como ficaram as urgências esta manhã? Tens possibilidade de regressar a casa a tempo de ires buscar o Pedro?

- A situação nas urgências ficou normal, tenho no entanto de passar pelo Hospital para me certificar como estão a evoluir os pacientes que operei. Quanto ao Pedro não te preocupes, eu vou buscá-lo ao colégio.

Momentos depois despediram-se seguindo cada um o seu destino. Inês tomou direção do Laboratório onde trabalhava, já com um significativo atraso naquela manhã. Ao chegar, tinha à sua espera o diretor que em reunião com ingleses queria demonstrar as conclusões dos recentes progressos da investigação em curso. Inês tinha realizado em laboratório cruzamento e manipulação genética em sementes de vários cereais, tendo resultado uma nova planta de alto potencial de produção e elevado valor nutricional.

Nos dias de hoje a investigação assume uma crescente importância nas respostas aos múltiplos desafios que se colocam em todas as áreas da atividade humana. Também a agricultura com o aumento da população mundial, presentemente em sete biliões de pessoas e consequente redução de área agrícola, trás aos responsáveis pelos governos e organizações mundiais uma preocupação por respostas urgentes para o problema alimentar mundial.

Inês nasceu com raízes à terra. Há várias gerações que sua família está ligada à produção agrícola, pelo que a sua formação em biologia, resultou do despertar para a luta pela melhoria da essência do torrão que a viu nascer. O entusiasmo que põe no seu trabalho está muito para além do apurado sentido de responsabilidade profissional - é sobretudo, amor pela descoberta de realizar uma nova abordagem para a agricultura. No Laboratório não deixa ninguém indiferente, o que lhe tem granjeado merecido reconhecimento e uma rápida progressão na carreira. O mais gratificante de tudo são os momentos da descoberta, no limiar do conhecimento, que procura partilhar com colegas e responsáveis hierárquicos, fazendo de cada patamar alcançado, um degrau para o seguinte. Essa busca permanente por novas soluções é pois uma atitude que cultiva desde jovem, tendo por horizontes limite, o infinito. Ainda muito jovem fez algumas tentativas de cruzamento de espécies, que lhe valeram reprimendas sérias de sua mãe, felizmente sem consequências para os pobres dos animais. Passada a idade das aventuras descontroladas e já de posse de sólidos conhecimentos adquiridos na faculdade, no âmbito do curso de biologia, tomou conhecimento dos riscos elevados que se podem correr com a manipulação genética no reino animal. Muito para além dos aspetos de natureza legal, Inês considera que os potenciais riscos de manipulação, podem ser de tal forma graves, que preferiu estar longe dessa área de investigação.

O investigador é, por espírito de missão, um explorador do insondável, pelo que quase sempre aceita uma atitude de desafio nos limites, levando-o a pisar terrenos pouco seguros e, quantas vezes, mesmo tenebrosos. A ciência é um veículo cada vez mais utilizado e preparado para enfrentar os novos mundos, mas, mesmo assim, a cada esquina surgem imprevistos e consequências nefastas. No passado, alguns homens no desejo de explorar o desconhecido pagaram um alto preço pelas suas descobertas, de que somos hoje herdeiros e beneficiários. Num futuro, não muito distante, vai ser cada vez mais possível predizer os resultados finais, muito antes de se chegar ao términus das investigações. Inês estava pois no seu meio natural, quer por opção académica, quer por inserção profissional.

Ao chegar a casa no final do dia Inês foi confrontada com um novo residente. Para sua surpresa, em cima da mesa da cozinha, tinha um vaso de vidro com água e dentro dele um peixe colorido nadando de um lado para outro, irrequieto.

- Que vem a ser isto?! – disse Inês indignada e em alta voz.

Pedro e Henrique que estavam próximos correram à cozinha procurando suavizar a situação.

- Não fiquem a olhar para mim com essa cara! Podem explicar-me o que vem a ser isto? (Inês apontava para o vaso em cima da mesa).

Henrique e Pedro entreolharam-se, procurando decidir qual deles iria responder.

- Então não têm nada para me dizer?!

- Queres ser tu a explicar à mãe?

Pedro olhou uma vez mais para o pai, indeciso, como que a pedir-lhe ajuda.

- Bem, nada de especial! A amiga do Pedro resolveu dar-lhe uma pequena lembrança. É tudo!

- Eu quero ouvir o que Pedro tem para dizer.

- Sabes como é, mãe, a Naná acha que se eu o tiver em casa sempre penso mais nela! Coisas de namorada!

- Imagina como te sentirias se estivesses confinado a um espaço tão pequeno como está o teu peixe!

- Oh mãe, eu não sou um peixe!

-Ninguém gosta de estar preso, nem mesmo um peixe. Sabias?

- Pois, mas que posso eu fazer?

- Vamos ver o que se pode arranjar.

Inês olhou para Henrique com uma expressão de preocupação e condescendência. Desde pequena que ficava incomodada ao ver animais presos em espaços restritos. Henrique conhecia muito bem essa faceta. Quando se conheceram, Inês era já uma ativista pela defesa dos direitos dos animais. Na faculdade, os colegas mais próximos, há muito que lhe conheciam essa tendência. Sempre que um movimento, ou campanha, se formava no horizonte pela defesa dos animais, lá estava Inês pronta a colaborar. Mesmo nas conversas de grupo quando o assunto era direitos dos animais lá estava ela, pronta a intervir. Em muitos casos a sua atitude chegava a ser mesmo irreverente e inoportuna. Para Henrique aquela faceta era responsável por algumas clivagens e até mal-estar, mas Inês era mesmo assim, não ficava indiferente a estas questões. Com o passar dos anos e um crescente aumento de maturidade, passou a ser menos impulsiva na manifestação das suas opiniões, o que lhe valeu uma outra serenidade nas relações humanas, principalmente quando era confrontada com divergências de peso. Desta vez o assunto foi trazido pelo seu próprio filho, o que não deixava de acrescentar maior preocupação, pois além de manifestar a sua discordância tinha de gerir a situação com alguma perspicácia e até delicadeza. Durante o jantar ninguém quis tocar no assunto, apesar de estar bem presente na mente de cada um. Esta circunstância alterou um pouco os hábitos da família, tendo instalado frequentes silêncios, em lugar das animadas conversas que sempre as refeições proporcionavam. Nos momentos seguintes, no final da refeição e enquanto Inês dava um pequeno arrumo à cozinha, Henrique recolheu ao seu escritório para pôr em dia correspondência recebida no seu correio eletrónico. Pedro nestas ocasiões, sentava-se frente à sua mesa de trabalho fazendo os seus trabalhos da escola, mas desta vez preferiu sentar-se na sala a olhar de frente o pequeno aquário. Do outro lado do vidro ficou a observar os movimentos de vai e vem do peixe que a Naná lhe tinha oferecido. Com o passar dos minutos, a cada ziguezague deste, parecia-lhe ser a própria amiga a fazer-lhe acenos. Assim ficou imóvel e extasiado, durante longo tempo, até ser surpreendido pelos pais, que enternecidos contemplavam aquela cena, tão nova para eles quanto para seu filho. Pela primeira vez, Inês compreendeu que as emoções também se podem transmitir por pequenos gestos como aquele. Não era possível ficar indiferente à expressão de felicidade, estampada no rosto de seu filho naquele momento, mesmo perante o contexto de agressão à liberdade do pequeno peixe. Qualquer palavra que Inês dissesse ali ficaria muito aquém do que o seu coração tinha para dizer, preferiu então olhar o seu filho uma vez mais antes de se retirar, tendo Henrique, em sinal de carinho e apoio, pousado a mão sobre o seu ombro. O espaço para uma posição mais radical de Inês ficara assim mais limitado, tinha por isso de encontrar uma solução de compromisso entre o reclamado pela emoção de Pedro e a sua consciência, defensora dos direitos dos animais. O dia seguinte foi, pois, o caminho encontrado por Inês para uma tomada de posição sobre o assunto, até porque acreditava que, por vezes, o travesseiro é também um conselheiro a ter em conta.

 

A Primavera finalmente chegara. Para trás ficara um Inverno rigoroso que tardava em passar. Em cada novo dia a terra despertava com um vigor redobrado, dir-se-ia sedento de rejuvenescimento. Por todo o lado, o verde era agora a presença mais notada e, com ele, a flora começava também a dar os seus primeiros sinais. O espaço aéreo cada vez mais ocupado pelos sons melodiosos dos pássaros, que, em voos cruzados, manifestavam o seu contentamento pelo retorno da abundância. Às primeiras horas, do dia, saíam dos seus redutos os rebanhos com destino aos locais de pasto. O Senhor João, como tantos outros pastores da aldeia, tinham no novo tempo renovada esperança. Os estragos produzidos pelo rigoroso Inverno podiam agora ser reparados. Assim, um pouco por toda a aldeia, intensificavam-se os trabalhos e a saída da letargia das longas horas de Inverno dava lugar a um frenesim de cuidados - era a vida a despertar na sua plenitude.

Em casa de Inês viviam-se intensamente as horas de cada dia, por razões diferentes. A aguardada chegada de um novo residente punha agora tudo e todos em canseiras suplementares, para que nada lhe faltasse. Num dos quartos da casa, especialmente decorado, cada objeto espelhava o carinho colocado para essa receção. Assim: cores; móveis; tecidos e outros objetos, transmitiam muito mais que uma simples sensação de conforto. Pedro mostrava-se agora mais irrequieto do que habitualmente. Nem mesmo o peixe e a sua namorada Naná lhe desviavam o pensamento dominante - a proximidade da chegada da irmã. Nas muitas perguntas que colocava, umas à mãe e outras ao pai, deixava transparecer algum ciúme, por ter de partilhar o anterior espaço afetivo dos pais pela concorrente que se avizinhava. Apesar dos cuidados e atenções dos pais para com Pedro, este mostrava-se cada vez mais sensível e inseguro nesta questão, assim por vários meios e modos procurava agora chamar as atenções sobre si, quer com atitudes de irreverência, quer fazendo-se notar nos mais pequenos detalhes. O pai particularmente atento com tudo o que se passava com o Pedro, tinha para com ele uma atitude de maior compreensão e tolerância, até porque na sua meninice tinha passado por uma fase semelhante.

A mãe de Henrique (avó de Pedro) contava que com a chegada do segundo filho, Henrique nessa altura tinha pouco mais de um ano de idade, ao ver sua mãe com um bebé ao colo a quem dedicava todas as atenções desatou num choro inconsolável. Na altura foram necessários vários meios para controlar os seus receios. Para os pais aquele tinha sido um aviso, para prepararem melhor a chegada de outros irmãos. Com efeito aquela cena não se repetiu mais com o pequeno Henrique, nem com os irmãos mais novos.

Para o casal, o seu filho Pedro estava a passar por uma reação psicológica natural, pelo que não requeria mais do que uma atenção suplementar de apoio emocional, fazendo chegar a ele também o carinho e amor com que prendavam a futura filha.

Os ventos de felicidade aprazível traziam àquela aldeia e, em particular àquela casa, a alegria de viver (quando as pessoas estão felizes por dentro, isso nota-se por fora). A tudo isto não eram alheios fatores externos favoráveis na aldeia: ar puro; águas cristalinas; solos despoluídos, concorrendo para que as populações se alimentassem saudavelmente, elevando assim os níveis de serotonina e com eles o bom humor. Naquela aldeia, a longevidade caminhava a par da felicidade aprazível, apesar de não disporem aí dos equipamentos de uma grande cidade. Para Inês e Henrique aquele lugar era o melhor de dois mundos, trabalhavam na cidade mas no final de cada dia recolhiam à aldeia, que lhes oferecia descanso por entre uma beleza deslumbrante.

 

Pelas sete da manhã, Iris abriu os seus olhos, ensaiando pela primeira vez a sua voz de soprano. Na sala de cirurgias do Hospital, onde Inês fez parto por cesariana, ouviram-se palmas de satisfação por entre sorrisos dos presentes e com os olhos postos nos pais. A bebé, talvez por ter dado conta de que não estava sozinha naquele espaço, silenciou a sua voz por momentos, para segundos depois, voltar à sua tarefa inicial empregando ainda mais força. Henrique integrava a equipa médica, mas desta vez como assistente, expressando no seu olhar uma satisfação cintilante que lhe invadia a alma. Não era pois possível ficar indiferente a todo aquele quadro de ternura, cheio de simbolismo para o casal. Na sala de espera a notícia do nascimento de Iris chegou depressa, tendo aquele momento especial sido partilhado por amigos e conhecidos do casal ali presentes.

Lá fora o dia não podia ter começado da melhor maneira. No horizonte o sol acrescentava beleza e alegria a todos os recantos onde chegava, como que convidando todos a partilhar da alegria que se vivia naquelas salas do Hospital. Uma vez mais o nascer de uma vida manifestava o seu poder, como o mais belo prodígio da natureza.