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Cartas GUIA
para a FELICIDADE

Um legado transmitido
de geração em geração

 

 

Helena Rodrigues

 

 

 

© Helena Rodrigues

© Cartas guia para a felicidade. Um legado transmitido de geração em geração

 

1ª Edição: Junho 2018

 

Capa: Helena Rodrigues

Imagens: Helena Rodrigues

Paginação: Helena Rodrigues

Revisão: Joana Soares e Maria Rebelo

 

ISBN formato ePub: 978-84-685-3600-2

 

Impreso en España

Editado por Bubok Publishing S.L.

 

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Capítulo 1. O Adeus

 

 

 

A tarde de sábado ia já avançada. Na sua casa simples, e ainda feita de pedra, Domingos e Esperança descansavam na varanda. Sentados, cada um na sua cadeira de balouço e de mão dada, usufruíam do sol quente que se fazia sentir em mais um dia de primavera.

A varanda, com acesso apenas pelo interior da casa, ficava virada para a rua principal onde, e de quando em quando, passavam habitantes da aldeia. Estes cumprimentavam Domingos e Esperança com o desejo de uma boa tarde e com a troca de algumas palavras mais. Por toda a aldeia este casal era bastante querido, e todos sabiam que quando eles se encontravam naquela varanda, e nas suas cadeiras, a conversa com os demais seria curta, pois esse era um dos momentos a dois que adoravam partilhar.

Domingos era um homem baixo e magro, que se fazia acompanhar pela sua bengala e chapéu. Era calmo, pacato e tinha sempre um sorriso no rosto. Gostava de organizar jantares e almoços, para juntar os amigos e assim passar momentos maravilhosos, que um dia mais tarde seria bom recordar. Esperança era uma mulher igualmente baixa mas com mais alguns quilos que o seu marido, pois adorava passar horas a petiscar. Não prescindia de um lenço na cabeça, era ativa, alegre e gostava de inventar atividades, de forma a canalizar toda a sua energia e imaginação.

Domingos tinha 85 anos, Esperança 83, e eram a companhia inseparável um do outro. O casamento durava já há 60 anos, e por entre alegrias e tristezas, desafios e derrotas, conquistas e dificuldades, amavam-se e eram o complemento um do outro. Enquanto Domingos acreditava na realidade apenas, no que os seus olhos viam, Esperança acreditava no sonho. Acreditava que todo o poder do mundo se encontra nas mãos de cada um de nós, e que só com a decisão de agir e realizar cada um dos nossos sonhos, é que o mundo gira e avança. No entanto, e o que os unia verdadeiramente, era o facto de ambos desejarem, todos os dias, sentir...dar lugar às emoções, aos sentimentos. E geralmente, preferiam sempre as boas emoções.

Gostavam de ouvir música, geralmente clássica ou um animado fado, e de ler um livro juntos. Ora lia Esperança em voz alta, ora lia Domingos, para que assim pudessem ambos seguir pelos caminhos da mesma estória. Demoravam horas nas leituras, lendo devagar, saboreando cada frase e o desenrolar do enredo. Quem cozinhava e tratava dos afazeres da casa era a esposa. Ele rachava lenha para a lareira, prevenindo os invernos frios que se faziam sentir, e tratava da pequena horta que tinham num quintal, nas traseiras da casa. Da horta colhiam legumes, frutas, batatas e flores.

Adoravam receber os amigos em casa e nesses dias vestiam-se a rigor. A casa era decorada a preceito com flores, toalhas de cores semelhantes, pratos e talheres, dos mais bonitos que tinham lá por casa.

Domingos e Esperança tiveram apenas uma filha, Julieta, que adoravam e mimavam o quanto podiam, e com quem procuravam falar todos os dias e estar o maior número de vezes possível. Julieta vivia em Lisboa e, apesar da distância, a relação entre eles era muito próxima e forte.

 

***

 

Numa bela manhã de domingo, em que Julieta foi visitar os pais na companhia do seu marido Valentim, organizou-se um almoço, com a presença de amigos, comida saborosa, flores, aromas e música. A seguir ao almoço organizou-se um baile.

Domingos e Esperança viviam com as suas pequenas reformas, o que não se revelava problema nestas ocasiões. Quem vinha para estes momentos trazia sempre uma contribuição. Um ingrediente, uma garrafa de vinho lá da adega com bastantes anos, ou um novo CD de música para dançarem, ao que todos chamavam carinhosamente “As Compilações de Domingo”.

As mulheres confecionaram os mais variados pratos e sobremesas, e as bebidas, as mesas e os aperitivos ficaram a cargo dos homens. Depois da mesa posta e dos cozinhados prontos, sentaram-se todos de roda da enorme e comprida mesa, distribuindo comida pelos pratos e provando um pouco de tudo. O almoço decorreu, como sempre, numa grande algazarra, ora em conversas cruzadas, ora focados num tema que debateram acesa mas tranquilamente. Geralmente os almoços duravam horas e terminavam com os estômagos bem recheados. Para contrariar a moleza que segue um farto almoço, e de forma a continuar a boa disposição, dançaram vários tipos de música e da forma que melhor souberam, trocando de pares várias vezes e não deixando ninguém parado. Continuaram assim a tarde toda, sem parar, ao ritmo de cada um. Petiscando a comida que ainda sobejava, bebericando sem abusar um licor ou vinho, lavando um prato ou uma panela, até à hora de recolher, em que cada um dos convidados regressou a casa.

A alegria destes momentos era explícita, todos gostavam de fazer parte da lista de convidados, e desejavam que perdurassem no tempo. Mas em breve estes convívios teriam o seu fim.

 

***

 

A aldeia onde Domingos e Esperança viviam e tinham nascido, era uma aldeia perdida no norte e interior transmontano, portas meias com Espanha e com uma história de reis e castelos, igrejas e costumes muito antigos, por desvendar. Chamada Outeiro, por outrora se dispor no pequeno monte que sustentava o entretanto destruído Castelo, foi denominada, noutros tempos, Outeiro de Miranda, e foi Sede de Concelho entre 1514 e 1853. No alto do pequeno monte observam-se, ainda nos dias de hoje, as ruínas da antiga fortaleza, e pela aldeia conservam-se testemunhos do glorioso passado da freguesia: a casa camarária, o tribunal, o pelourinho, a velha igreja matriz, a imponente e majestosa Basílica do Santo Cristo e quatro pequenas capelas.

Do seu passado e para além das misteriosas construções, permanece um valioso legado, que ao longo de séculos, as suas gentes souberam proteger e transmitir. Uma natureza exuberante composta por montes, planaltos e vales verdejantes. Por águas puras e cristalinas em fontes, ribeiras, riachos e quedas de água, que culminam nos caudais dos rios Sabor e Maças. Uma cultura singular de festas e cultos aos seus Santos e uma língua ancestral, proveniente do Mirandês. Este harmonioso conjunto de preciosidades, confere à aldeia toda a sua identidade. Pelas suas terras, onde reina a natureza e o clima demonstra a sua fúria ao longo das estações do ano, os trabalhos agrícolas, a convivência com os animais, os seus costumes e tradições, os seus aromas e sabores, marcam o dia-a-dia dos seus habitantes. Forma de viver esta, que serve de boas vindas a uma região de gente hospitaleira e genuína.

No Inverno sente-se o aroma a lenha queimada que exalta das chaminés, do fumeiro que ganha vida e se cura em cada casa, os sabores de doces e pães típicos do natal e dos meses frios. Na Primavera a aldeia e os arredores ganham as mais variadas cores: o verde dos imensos campos verdejantes, o rosa das cerejeiras em flor, o vermelho das roseiras, o amarelo e branco dos malmequeres, o azul, o lilás e outras tantas cores, das mais diversas flores, plantadas nos vasos que enfeitam as casas de pedra. No Verão, surgem as tardes de conversa à sombra, os mergulhos e brincadeiras na represa do rio Maçãs, as semanas seguidas de festas em honra dos mais variados Santos, os serões de noites quentes e agradáveis na conversa ou a olhar o céu estrelado. Com o Outono vêm as primeiras chuvas e o cheiro a terra molhada, os dias mais pequenos e logo o recolher mais cedo, as primeiras noites de convívio à lareira, as camisolas e os casacos de lã. E estação após estação, ano após ano, assim se repete este emaranhado de aromas, sabores, sensações, cores e emoções.

 

***

 

Meses antes do fatídico dia, mais precisamente no mês de Janeiro de 2010, teve lugar uma das mais tradicionais e esperadas festas da aldeia: a festa de São Gonçalo. De todos os cantos do país chegaram filhos e netos dos habitantes de Outeiro, amigos e conhecidos, emigrantes e visitantes de aldeias vizinhas, sem esquecer os que, apenas de passagem, pararam e participaram por curiosidade.

Julieta e Valentim, tinham chegado no dia anterior na companhia dos seus dois filhos, Alma e Filipe. Era o terceiro ano que guardavam dois dias de férias para poder estar presentes nesta divertida festa, e claro, junto de Domingos e Esperança. Devido à distância, e para não se tornar um fim de semana demasiado exaustivo, rumavam para os arredores de Bragança na sexta-feira e regressavam a Lisboa na segunda. Sempre que a sua filha, genro e netos chegavam, Domingos e Esperança recebiam-nos de braços abertos e com uma enorme alegria estampada no rosto. Alma e Filipe eram recebidos da mesma forma, quer em criança quer já crescidos. Domingos dava-lhes um abraço apertado e duradouro, Esperança para além do abraço, perdia-se em mil beijos numa face e outros mil na outra.

Na Basílica do Santo Cristo, teve lugar a missa que abriu os festejos do dia e onde se benzeu o pão que, dias antes, os mordomos da festa elaboraram num ato de diversão e convívio. O pão doce, denominado “Rosca”, foi como sempre, cozinhado em forno de lenha, segundo uma típica receita, conhecida e transmitida ao longo dos anos, pelos muitos filhos da terra. O pão tomou as mais variadas formas, a mais usual, a forma circular que se assemelha ao sol, mas observavam-se também bonecas, letras, instrumentos musicais, pares de namorados, entre outras, sem esquecer o “São Gonçalo a cavalo de um cavalo”. Todas as Roscas revestiram um andor em forma de cubo e, sobre este, dispunha-se uma pirâmide igualmente revestida. Nos quatro cantos superiores do cubo e no pico da pirâmide, sobressaiam cinco “Ramos”, um conjunto deliciosamente combinado de pequenos bolos, bolachas (chamadas galhetas), chouriços, rebuçados, laranjas, figos, waffles (ali denominadas talassas) e Roscas em tamanho pequeno.

O final da missa foi marcado com a procissão em volta da igreja, onde seguiram os Gaiteiros e dois andores, o da Roscas e logo de seguida, o do Santo. O primeiro é denominado “Charolo”, ou pronunciando à bela forma transmontana, o “Txarolo”. As famílias reuniram-se depois em suas casas para o almoço, e de seguida todos os moradores e visitantes juntaram-se no centro da aldeia, iniciando a Dança das Roscas.

A família ocupou os seus lugares para dar início à dança, alinhando-se com os restantes membros das filas. Domingos, Valentim e Filipe na fila dos rapazes, Esperança, Julieta e Alma na fila das raparigas, que se dispunham uma à frente da outra.

Todos os festejos do dia não fariam sentido sem uma presença importante, a presença dos “Gaiteiros”: o tocador da gaita-de-foles e os tocadores de instrumentos de percussão, a caixa e o bombo. Os três deram então corpo à melodia típica do dia e a gaita-de-foles ditou o início da dança. Tal como num rancho de folclore os intervenientes da dança elevaram as mãos, na mão de alguns dos homens que constituíam a fila, existiam Roscas, e dando dois passos ora para um lado, ora para o outro, foram avançando e recuando. Quando avançavam as duas filas aproximavam-se, e quando recuavam, afastavam-se, movimentos esses que se repetiram até que o bombo deu o sinal de viragem. Ao primeiro sinal do bombo as filas aproximaram-se, ao segundo misturaram-se, os pares chocaram os traseiros, e ao terceiro sinal as filas dirigiram-se para o sentido contrário ao que se encontravam. E assim continuaram até que a gaita-de-foles se calou. Diz o povo, que a Dança das Roscas, é um culto à fertilidade e à prosperidade das novas gerações.

Seguiu-se o leilão das Roscas, cujo dinheiro angariado seria utilizado no ano seguinte. As Roscas eram tantas que o leilão levou horas. Quem queria comprar, ia lançando valores para o ar, enquanto os demais iam brincando pela rua ou preparando o passo seguinte. Antes de o sol se pôr e a seguir ao leilão, iniciou-se a “Entrega da Festa”, passando à porta dos dez mordomos do ano corrente e pela porta dos 10 mordomos que realizariam a festa no próximo ano. O agrupamento de pessoas seguiu atrás dos Gaiteiros, que iam tocando variadas músicas populares, e em cada porta que se abriu, eram servidos doces e bebidas. Entre bolachas, bolos e chocolates, jeropiga, licores e vinho do porto, foi-se aquecendo a alma e alegrando o espírito. A festa seguiu assim até que se esgotaram as portas e os mordomos e o sol se pôs.

Domingos e Esperança, como era habitual, não acompanharam a entrega da festa. Compraram algumas roscas no leilão, para depois dar à sua filha e netos, ou aos amigos que assim entendessem, e seguiram para casa a fim de preparar o jantar. Filha, genro e netos chegaram à hora de comer com pouco apetite, mas ainda assim não fizeram desfeita. Depois do jantar viria a “Pandorcada” e o estômago teria que aguentar os próximos litros de bebida.

A abrir a caminhada noturna encontravam-se os Gaiteiros e os homens que seguravam archotes para iluminar os caminhos. A fechar o pelotão vinha todo o povo. Em cada casa que o cortejo parou, os respetivos donos ofereceram bebidas, guloseimas e uma Rosca, dando lugar à Dança.

Julieta e Valentim regressaram a casa assim que o cortejo passou à sua porta. Alma e Filipe continuaram noite fora, até que a volta a todas as casas terminou e o povo se reuniu na junta de freguesia, para dar inicio ao baile que se estendeu noite fora. E aquele ano de festa estava a ser particularmente divertido. Um dos amigos de infância de Filipe, tinha trazido com ele, colegas de terras do litoral, que não conheciam os costumes do interior. Um desses colegas, maravilhado, e no momento de chocar os traseiros, em vez de o fazer apenas uma vez, repetia vezes sem conta, e enquanto as filas já se tinham dirigido para sentidos opostos, ele e o seu par continuavam no meio, tendo que correr depois para acompanhar os restantes. Cada dança estava a revelar-se uma verdadeira paródia.

O domingo era geralmente para descansar e repor energias, passear e contemplar a natureza. Segunda-feira partiam. Pelo vidro traseiro do carro ficava a calma e a beleza daquela aldeia e a alegria daquela gente. Pela frente, uma imensidão de quilómetros a percorrer, até estar de novo na habitual azáfama da cidade.

Sempre que se despediam, e enquanto filha, genro e netos, carregavam o carro, de malas e sacos cheios de comida e produtos hortícolas, Domingos ia à capela acender uma vela, para que a viagem corresse sem sobressaltos. E Esperança iniciava o seu pranto...As lágrimas corriam-lhe sempre pelo rosto, sem as conseguir controlar, com uma tristeza profunda no seu peito. Sabia que iria ficar bastante tempo sem os ver. Só os voltaria a abraçar nas próximas férias. Mas naquele ano o ritual de acontecimentos foi outro.

Decorria o mês de Abril de 2010, a Primavera tinha-se iniciado não fazia muito tempo, e Domingos e Esperança continuavam no seu ritual diário. Certo dia, e ao mesmo tempo, um cansaço enorme apoderou-se daqueles dois corpos. Terminaram o seu jantar, embora tivessem comido pouco, e sentaram-se nas suas cadeiras na varanda, sentindo uma leve brisa no rosto e observando as estrelas no céu.

– Querida, que noite agradável.

– Sem dúvida, Domingos. Mas hoje sinto-me muito mais cansada que o normal.

– E esse cansaço percorre-te os músculos todos, dificultando-te os movimentos, como a mim?

– Sim – respondeu Esperança.

Permaneceram alguns minutos em silêncio, de mão dada, e a contemplar o céu.

– Esperança? – interpolou Domingos.

– Sim – respondeu ela.

– Estará, por acaso, a surgir no teu pensamento, a promessa que um dia fizemos um ao outro?

– Qual? A de que partiríamos juntos, e assim nenhum de nós sofreria a inevitável dor de um adeus?

– Sim, essa mesma.

– Sim, é a única imagem que me ocupa o pensamento neste momento.

Permaneceram mais alguns momentos em silêncio e da mesma forma se levantaram devagar, quando a noite ficou mais fria e decidiram ir dormir.

Depois de confortáveis na cama, Domingos disse para Esperança:

– Estás preparada?

– Estive sempre quando se tratava de caminhar ao teu lado, e estou agora na nossa última caminhada.

– Então dá-me a tua mão.

Aninharam-se um no outro, como era hábito. Domingos recebeu-a no seu abraço e ela encostou o seu rosto no peito dele. De mãos dadas disseram um ao outro:

– Amo-te, minha querida mulher.

– Amei e amar-te-ei sempre, meu companheiro.

Em silêncio adormeceram e no dia seguinte, quando o sol nasceu, os seus olhos não se abriram mais.

 

 

 

 

 

Capítulo 2. Escolhas de Vida

 

 

 

O quarto onde Julieta se encontrava era pequeno, tranquilo e solarengo. Numa jarra, na mesa-de-cabeceira, havia sempre flores diferentes, trazidas pela família e pelas enfermeiras. As flores murchas eram retiradas pronta e estrategicamente, para que, assim, o ramo de flores estivesse sempre cheio de vida. Decorria o mês de Maio de 2012, Julieta tinha sido internada, e aguardava a sua vez de ocupar, nesse dia e por algumas horas, o bloco operatório. O seu marido tinha saído há pouco menos de uma hora, e ela, então sozinha, entregara-se ao cansaço e ao sono, repousando um pouco.

A porta abriu-se devagar, sem emitir qualquer som, e Julieta, dormindo, nem deu conta da visita que acabava de chegar. Era Alma que vinha dar um beijo à sua mãe. Encontrando-a a repousar, chamou por ela em voz baixa. Julieta não respondeu e Alma ficou ao seu lado em silêncio, aguardando que, por si própria, ela acordasse.

Calmamente, Alma aproximou a sua mão da de Julieta que repousava sobre o lençol. No seu rosto corriam lágrimas, na sua mente o medo, pelo seu corpo o sabor amargo da tristeza. Desde que o cancro tinha sido diagnosticado, Alma nunca chorara à frente da sua mãe. Em vez disso falava em tudo menos na doença, sorria e dava-lhe mimos. Naquele momento, com a sua mãe a dormir, Alma não se conteve. Tinha medo de perder a sua mãe. Já tinha vivido o adeus aos seus dois avós ao mesmo tempo, não podia, nem aguentaria, mais um adeus. Não a sua mãe, não tão nova, não naquele momento importante da sua vida. As suas lágrimas caiam uma atrás da outra sobre o lençol. Alma chorava de cabeça baixa sem conseguir estancar as lágrimas.

Julieta acordou no entretanto, e vendo a sua filha a chorar, preparava-se para agarrar a sua mão e devolver-lhe todo o carinho que ela lhe tinha dado nos últimos tempos, mas deteve-se e fechou os olhos novamente quando a voz de Alma, trémula, se fez ouvir:

– Não desistas mãe. Por favor! Não agora, não irei aguentar. Ainda sinto muita falta dos avós, não quero sentir a tua também. Bem sei que eles te fazem muita falta, mas e a mim? E ao mano? E ao pai? Irás fazer muito mais. – Alma continuava a falar em voz baixa, por entre lágrimas, sem saber que Julieta a ouvia. – Luta mãe, por favor luta, não te entregues, fica connosco. Ainda preciso de ti...ainda precisamos de ti!

Alma fez uma pausa, Julieta estava a ponto de explodir em lágrimas mas conteve-se, e antes de proferir as últimas palavras, colocou a mão sobre o seu ventre, e disse:

– Luta contra esta doença, acredita que a vais vencer, tal como eu, o pai e o mano acreditamos, este é o momento certo para voltares a agarrar a vida. Ainda não tenho a certeza, mas creio que vais ser avó.

Alma não conseguiu proferir mais palavras, e antes de chorar compulsivamente, saiu do quarto e foi-se acalmar no exterior. Julieta libertou o nó que tinha na garganta e chorou igualmente. E se fosse mesmo ser avó? E se o sofrimento inerente àquela doença, fosse necessário para que ela desse, de novo, valor à vida? Se calhar não tinha que partir já. E a sua família, mais pequena sem os seus pais, poderia agora crescer de novo com os seus netos. Um turbilhão de dúvidas ocupava o pensamento de Julieta, mas no seu coração já nascia uma nova esperança.

Do outro lado da porta, enquanto Alma procurava acalmar-se, André chegava com um saco na mão. Vendo-a chorar, abraçou-a simplesmente sem dizer ou questionar nada. O abraço dele era o seu porto de abrigo e acalmava-a sempre. Quando a sentiu mais serena, André tomou a palavra:

– Boneca, fui buscar os resultados tal como me pediste – no seu olhar morava um brilho.

– E então? Já viste qual é o resultado? Já abriste? Estou ou não grávida? – Alma disparou uma quantidade de questões.

– Calma meu amor, já abri sim, não aguentava esperar até aqui, assim que a carta me veio parar à mão abri logo. – André adorava fazer suspense e demorar nas respostas. Continuou – Bom...confesso que fiquei sem saber o que fazer quando vi o resultado...sem saber como te iria dizer isto, tu queres tanto ser mãe...tive que passar antes noutro sítio para te trazer algo que te vai animar. Espero que seja o mais adequado.