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À raiz galega na alma de Cuba

A meu avô,

Manuel Castiñeira Fernández

 

 

Agradecimentos

 

Este volume recebe por herança o trabalho de pesquisa, escritura e edição realizado para o livro Todo el tiempo de los cedros e, por essa razão, o esforço dos que participaram naquela ocasião do sonho também está presente nestas páginas.

Um abraço para a Casa Editora Abril e para a Oficina de Assuntos Históricos (OAH), à Equipe de Versões Taquigráficas, à Direção de Informática, ao Grupo Criativo, à Secretaria do Conselho de Estado, e às gráficas  Alejo Carpentier e Federico Engels, que permitiram apalpar este livro em rosto, corpo e estampas de papel.

À missão diplomática cubana em Madri, aos que facilitaram as buscas e as entrevistas feitas durante a visita da autora e de Asunción Pelletier – especialista da OAH – à Espanha, de 28 de maio a 11 de junho de 2007. Em Madri, especialmente ao embaixador Alberto Velazco San José, María del Pilar Fernández e Rubén Abelenda. E no Consulado de Santiago de Compostela, ao cônsul Alejandro Fuentes e aos fraternos Mariam Arestuche, Luis García, Coral Prieto e María Sánchez (anterior cônsul nessa cidade).

Tenho alta consideração pelas referências que ofereceram o pesquisador galego Javier Cordero Aparício – que conhecemos através de outro galego amigo de Cuba, Antón Alonso –; o médico José Eladio Fernández Alfonso em Vigo; e o pesquisador Luis López Pombo, em Lugo.

Estimo muito a hospitalidade de Carlos López Sierra, vereador de Láncara, e de todos que lá ofereceram sua colaboração: Eladio Capón López, Victoria López Castro e Manuela Argiz, entre outros.

Agradeço especialmente a Tania Fraga Castro, neta de Dom Ángel, que, em maio de 2007, entregou ao Gabinete de Assuntos Históricos do Conselho de Estado uma fotocópia do registro do Corpo de Sanidade Militar, de Dom Ángel Castro Argiz no tempo em que prestou serviço militar como soldado na ilha de Cuba, o que permitiu comprovar a concordância de seu itinerário com o registrado no Histórico do Regimento Isabel II Nº 32 Arquivo 4.

A minha gratidão ao Arquivo do Serviço Histórico Militar em Madri do Instituto de História e Cultura Militar do Ministério da Defesa na Espanha e, especificamente, a María de Jesús Franco Durán, técnica; e ao funcionário Luis Mateo González, pelo rigor, a presteza e a delicadeza com que orientaram as indagações.

Agradeço a boa disposição dos arquivistas do Arquivo Diocesano do Bispado de Lugo e da igreja paroquial de San Pedro de Láncara, e a dos especialistas do Arquivo Histórico Provincial de Lugo.

Como sempre, meu muito obrigado aos seres queridos e meus filhos, que me alentam e apoiam no estudo e em cada lauda que escrevo.

Finalmente, a autora corresponde com um abraço fraterno o nobre empenho de Alba Orta Pérez, que, calada e eficaz, colaborou nas pesquisas, contribuiu com sugestões, revisou todo o material e o submeteu à vista aguda da editora Lilian Sabina, ao domínio técnico de Enrique D. Medero e à imaginação do designer Ernesto Niebla, que se dedicaram ao trabalho com paixão.

 

 

Abrigo

 

Percorreu com os olhos a madeira dos carvalhos e castanheiras, a armação do teto da casa. As vigas eram como uma rua larga de Lugo, onde desembocavam bem-comportadas outras ruelas deslizadas por trechos e arcos umbrosos ao interior das muralhas romanas. As aranhas penduravam nos cantos, a salvo do espanador que Antonia passeava pelos tetos assiduamente. Os paus entretecidos no alto terminavam nos madeiros grossos, estes sustentavam o céu de sua vida e as telhas de ardósia que protegiam das nevadas chuvosas ou do sol implacável da metade do dia em verãos ardorosos. A resina ainda escoava das árvores deitadas em dias de umidade e ele sentia a água nas pedras da casa. Sentia seu frescor e manar. A água fluía como a do Neira e fluíam os dias vividos até então, como a música longínqua e sombria de uma gaita no inverno.

Os López e os Osorio, mais velhos pelos lados de Láncara, falavam no manancial no fundo do prédio, um dos mais modestos da aldeia, como uma parte ou dependência de uma propriedade maior, situada em um ângulo esquinado do vilarejo, no limite para além do qual os terrenos se estendiam lisos, até começarem a empinar-se tênues em direção às colinas. Rodeada no fundo de uma cerca de pedras, a pequena construção se cuidava dos invernos e das rajadas de vento com muros grossos e janelas de vidro como postigos. As águas subterrâneas brotavam a seus pés, e a família bebia o líquido à porta ou de lado do lar. Sua mãe, desde os velhos tempos, enchia as baldes de barro lá mesmo. Mas estas não eram as águas que umedeciam as pedras, as lajes que repousavam umas sobre as outras tanto tempo. Para ele, as águas do rio Neira segredavam seu rumor dentro das pedras dos muros e talvez dentro de si. Sentia as águas quando estava acordado ou dormindo, como se as pedras da casa chovessem, ou como se as gotas calassem seus ossos, seus ossos desnudos; doíam todos e a perna abrigada pelos canfores e panos quentes, o único remédio para se aliviar. A moléstia ia da cadeira ao tornozelo, às vezes se tornava insuportável. Ele passava horas debaixo dos cobertores com a esperança de se aquecer e melhorar, assim, talvez, apagaria a sensação de que uma parte de seu corpo pesava e tinha envelhecido prematuramente, ficado velho demais, como o Sebastião, que, encurvado e exausto, vagava pelos caminhos da aldeia e mal devolvia os cumprimentos dos compadres e das comadres, tinha perdido a memória e o ouvido, andava em um mundo que os outros não viam, e falava para dentro como se respondesse a outras vozes…

Um candeeiro de óleo devia permanecer aceso na casa porque ainda não clareava. Angelito, enrolado no cobertor, abrigou–se no escabelo, maciço e confortável, perto de onde fumegavam as cinzas do fogo aceso à noite. Ergueu-se do leito, vadeou com sucesso o baú da roupa, o pequeno jarro, um armário e os veladores, sem enredar-se com a cortina divisória que isolava a cama de casal do leito dos filhos. Sua silhueta se esboçou efêmera no espelho. Deu alguns passos, pé ante pé, para não fazer barulho e acordar seus pais e irmãos, e, sobretudo, os animais; sentia sua respiração debaixo das tábuas do assoalho do dormitório, onde eram resguardados. Já os pombos e os morcegos se refugiavam no alto, na cornija. Apesar de seu caminhar sigiloso, Angelito provocou um acomodamento ruidoso do rebanho de ovelhas e vacas, um leve trote de cavalo, um surdo cacarejar de aves. Foi um alvoroço passageiro. Tudo voltou rapidamente ao plácido e calado repouso.

Sentando no escabelo, achava que o tempo não passava. Percebia e observava tudo em sua volta. O pêndulo do relógio de parede continuava se movendo compassadamente. Todos dormiam e a casa conservava o silêncio como uma gruta esquecida. Entre a dor e a insônia, já não suportava ficar na cama, mas, ao mesmo tempo, não conseguia acordar direito no meio da penumbra. Sua lucidez ia e vinha, como se estivesse sonhando acordado, ou visse visões… Na sala, os fiozinhos de fumaça subiam de vez em quando, em intervalos breves e espumosos. Em ocasiões, ele queria pegá-los. Sentia-se atraído irresistivelmente por eles que o levavam pelos labirintos para aquelas antigas e mil vezes escutadas histórias de guerreiros celtas, suevos, romanos, muçulmanos e cavaleiros Cruzados, confundidas no passado recente e remoto: esses espíritos habitavam a bruma espessa dos amanheceres naqueles confins, ou a vida de ilustres fidalgos da comarca, herdeiros dessa condição por um e muitos caminhos, todos considerados de boa sorte.

Uma vez, tinha escutado um notário enunciar cada um dos labirintos do destino pelos quais poderia alguém ser considerado fidalgo. Ele estava sentado ao lado de seu pai, debaixo da figueira próxima da igreja, e alguns homens do povoado repousavam a caminhada na volta do mercado. Reunidos à sombra, escutavam o miúdo escrivão, um homem fraco, cujo rosto, perfilado pelos óculos sobre seu nariz proeminente, sabia bem de sua superioridade entre os presentes pela exuberância de seus discernimentos e opiniões, perspicácia e conhecimento das diretrizes, capítulos, alíneas e normativas de todas as leis escritas e as hão de ser escritas, regedoras dos arbítrios e potestades nas imediações. Ademais, estava de visita por esses lares, onde o forasteiro era atração cerimoniosa e bem visto como sabedor de todas as verdades letradas. O burocrata deixava os inexperientes e neófitos moradores da aldeia com a boca aberta, enquanto discorria consciente e detalhadamente sem que Angelito, por sua curta idade, pudesse seguir o traço ou os significados daquele maçante discurso, pronunciado com entoação enfática e modulações de voz. O escrivão arrumava os óculos, erguia o queixo em pose de erudito e contava:

«Existem os fidalgos de sangue, que pertencem a uma família distinta, de classe nobre; os de bragueta – acrescentava com um sorriso malicioso – por terem tido sete filhos varões sem interrupção de mulher alguma; os de quatro lados, pelos avôs paternos e maternos; os de receber quinhentos soldos, que pelos antigos foros de Castela tinham o direito de cobrar quinhentos soldos em satisfação de injúrias; os de executória, quem tivesse litigado sua fidalguia e provado ser fidalgo de sangue e à diferença de quem a conseguia por privilégio do rei; os de goteira, alguém em algum vilarejo gozava dos privilégios de fidalguia, mas se mudasse para outro lugar perdia tal mercê; os de privilégio, por compra ou mercê real; os de linhagem nobre conhecida, quem tinha solar ou morada de família nobre, ou descendia dos que tivessem possuído esse bem; por prestar serviço ao rei, qualquer serviço do monarca com armas ou com sua própria pessoa, algo enunciado nas leis de Juan II: “Que os cavalheiros cidadãos de todas as cidades e vilas e lugares dos reinos de Sua Majestade gozavam de nobreza”; e por patente militar, os soldados que nos exércitos reais chegassem à patente de coronéis, marechais, sargentos majores, mestres de campo e capitães-gerais…» – concluiu quase sem fôlego sua melopeia exaustiva, grandiloquente e desnecessária. Os reunidos à sombra da árvore pouco puderam discernir de tudo isso, só conseguindo constatar o obscuro tema das ilustres conveniências e muito respeito.

Os paisanos da comarca e também ele conviviam desde a infância com sinais, vestígios ou detalhes do passado, alguns explícitos e compreensíveis à simples vista; outros, inescrutáveis ou enigmáticos, abundavam nos portões das igrejas, nos alicerces das pontes sobre os afluentes do Neira, nas paredes das capelas, em frescos e imagens baças, mas ainda vistas nos brasões, selos militares, ruínas de castelos e as chaves de ferro; nos poeirentos atalhos que levam ao Caminho Real de Santiago, baús, armários e mosaicos, lençóis, bordados das toalhas e a suavidade do tecido utilizado para os guardanapos; nas iluminações, inscrições dos muros, túmulos e livros paroquiais, diretrizes de petrucios2 para levar indumentárias, os cândis e candelabros, e nas tradições do dia a dia, os hábitos de trabalho e até debaixo da terra, de onde afloravam de improviso vestígios de uns antepassados que viviam em círculos, sonhavam em círculos, amavam em círculos e até morriam em círculos, sempre em círculos, como enunciando espirais ou infinitos concêntricos. Mágico, mágico mundo, nas terras a mão de Deus sobre a paisagem, no sétimo dia da criação, com suas rias e suas línguas de terra se adentrando no mar e tudo visto pelos habitantes como coisa natural e cotidiana sem cavilar muito nos seus significados ou nas razões de sua fartura lá, como parte de suas vidas.

Angelito tinha visto muitas vezes os círculos de pedra em algum promontório do vale, onde se perdia junto com seus primos dando voltas e voltas, mas para dentro, com os braços estendidos a ambos os lados como aves voando para um ponto.

Ah, o passado! Outros pormenores eram palpáveis e deliciosos, e cheirosos como o pão e o vinho, os filhós e os cozidos, as avelãs e castanhas, os presuntos, o toucinho, as morcelas e os chouriços, e o aroma da lenha ao fogo vivo invadindo até o último resquício das moradas e a alma, ou a certeza de que as pedras das taipas tinham sido colocadas lá centenas, talvez até milhares de anos atrás… Os sonhos não, os sonhos tinham em toda Galícia e na aldeia de Láncara o som do mar imenso nunca visto pela maioria de seus moradores e a forma de um barco sulcando as águas tormentosas do Norte, onde se punha o sol às tardes e de onde se avistava a Torre de Hércules, e o Farol romano protetor dos marinheiros, saindo apenas do porto em A Coruña… Os sonhos viajavam longe, às terras novas das Américas. Quando falavam, subia à cabeça e aos olhos dos indianos3 a euforia de seu coração. Sussurravam, ou exclamavam febris: América! América! Em referência a intensidades e abundâncias, mulheres formosas e riquezas sem fim: América! Um paraíso ao alcance em poucas semanas por mar desde que os navios propelidos por máquinas de vapor irromperam no itinerário das navegações encurtando o trajeto no tempo. E na América: Cuba, apesar da guerra, porque a guerra tinha acabado quando ele tinha três anos e a ilha continuava sendo “a fidelíssima” terra de promissão com cheiro de fruta fresca, orvalho matinal, fragrância de tabaco envolto em folhas de palmeira e o sabor a mel e álcool do açúcar prodigioso… Tudo eram sonhos, sonhos, sonhos intermináveis realizados pelos que iam longe da terrinha, do lar, e não ficavam no tédio e a decadência, a ruína que tomava conta de tudo: morriam os filhos nobres dos senhores feudais mais famosos, a hera ia cobrindo os muros dos castelos e desmoronava o esplendor das moradas e vidas; viravam pó títulos e nomeações, se perdiam os paços e até os empenhos de progresso, as nascentes indústrias eram superadas pelas de outras províncias e reinos capazes de se livrarem do passado, a rudeza e o pudor…

Entretanto, Angelito não conjeturava nada disso, de seu lugar, junto ao pequeno forno onde sua mãe cozia o pão todos os dias, na esquininha, só vislumbrava a cruz para evitar que “duendes e outros seres entre vilãos e vigaristas” malograssem a fornada em um excesso fugaz. Nesse instante, imaginou sobre a mesa as crocantes e douradas fatias de pão quente besuntadas com óleo de azeitona ou acompanhadas de um pedaço de toucinho preparado pelos pais em dias de matança. Saboreou os aromas de sua imaginação e sentiu fome. Desejou que amanhecesse quanto antes.

Com o clareamento, Antonia levantou-se e começou seus quefazeres na cozinha. Petra María Juana, que tinha cinco anos, invadiu os espaços do aposento como um torvelinho. Puxou o cabelo de Angelito, se enfiou no cobertor que tapava as pernas do menino, saltou alegre no seu colo, apontou para os passarinhos na vidraça da janela, entreabriu a porta da entrada, tagarelou sem parar e assomou o rosto para o lado de fora, ao frio, para ver se alguém passava pelo trilho. Logo, passariam as beatas cobertas com mantilhas e em corro de caminho à igreja; os homens levariam chapéus de feltro e expressão solene, e as crianças, muito compostas, se perguntariam como brotava uma música tão bela do órgão, uns acordes que transpunham invariavelmente o recinto da Casa de Deus e se espalhavam pela campinha como orvalho de manhã. Petra riu buliçosa até que sua mãe lhe pediu um pouco de moderação.

—Filhinha escuta, preciso de sossego – lhe disse.

Antonia estava grávida de oito meses segundo as luas transcorridas e em breve daria à luz outro ser, precisamente à chegada da primavera.

—Fala baixo, menina, fala baixo. Respeita o descanso dos outros. Aprende, aprende isso na tua vida – repreendeu de novo Petra María com voz branda e paciente.

Terminava abril de 1884. O pai descansava um pouco mais porque era domingo, dia de ir à missa ao badalarem os sinos da igreja, a uns poucos passos, com seus contrafortes medievais e o campo santo nos flancos como se estivesse cobrindo–a ou abraçando-a.

Com um xale cobrindo seus ombros e a camisola, Antonia, perguntou a Angelito a razão pela que não tinha ficado no dormitório até o amanhecer, havendo lá mais calor e abrigo, mas ele não quis dar explicações, porque se confessava a dor, teria de permanecer imóvel durante mais tempo. Seguia-a com a vista a todas as partes sem perder um segundo.

Desde sua atalaia, a um lado do quarto, acompanhava todos seus movimentos, ela se deslocava com a força do costume. Quando ele ficava horas fora de casa sentia saudade e corria para vê-la. Ele gostava de acompanhá-la nos solitários amanheceres silenciosos.

De repente, atrás dele, no galinheiro que estava embutido na parede do fundo da estância principal, as galinhas armaram um alvoroço dos diabos quando Antonia apanhou os ovos; bateram asas e bicaram a mão da mulher. Dentro em pouco, sua mãe serviria ovos estrelados, toucinho, torradas e chocolate quente.

Sem deixar de segui-la com os olhos, Angelito apreciava como ela ia de um a outro quefazer, próprio do despontar da manhã, sem sinal de cansaço pela volumosa barriga. Pouco depois, colocava nas mãos dele uma tigela fumegante de chocolate. Sorvia a bebida observando-a. Os olhos do menino esquadrinhavam todos os cantos da cozinha onde ela reinava como em nenhum outro lugar da casa. A mesa onde se amontoavam os potes, panelas e baldes, o escorredor onde se colocavam os pratos e as travessas depois de lavados no desaguadouro, as prateleiras com copos; os ganchos de ferro dos quais pendiam frigideiras, potes e caços; os armários para guardar garrafas e taças, o aparador onde conservavam os grãos, e numa caixa de madeira, o sal; num vão da parede, a lenheira; em outro espaço, a tábua, para amassar o pão, picar repolho, ou cortar carne. E, no fundo, um compartimento onde se resguardam dos ratos, os frutos e os legumes; as touciñeiras ou craveiras, de onde pendiam os ganchos de ferro em formato de ancora, com os toucinhos, morcelas, chouriços, presuntos e cachuchas4 … Porém, o que dava maior colorido à cozinha eram as maçarocas de milho tenro pendurados do teto, colocados a secar ao ar fresco, que refulgiam com o resplendor do lume, sobretudo ao escurecer o dia.

Sua mãe se inclinou para lavar e cortar as batatas e os pedaços de porco e colocou tudo com os grãos de bico na mesma panela que tinha levado ao fogo. Assim, adiantaria ao menos o mais difícil. Levava muito menos tempo preparar a sopa ou o refogado de cabrito, ou qualquer outra coisa. Num instante, acomodou uma mesinha de quatro pés e um diminuto talho redondo para que Petra Maria se sentasse para tomar o café da manhã. Depois, pôs água para esquentar em um pote de ferro. De onde, noutro tempo, iluminavam as tochas, acima do fogo, as pedras tinham perdido sua cor de monte e estavam enegrecidas pela fuligem.

Antonia ainda tinha o cabelo solto e vestia o roupão de dormir. Deveria se apressar, se quisesse se arrumar, assear, escovar o cabelo e prendê-lo em coque na nuca e, sobretudo, trocar de roupa, que, apesar de sóbria, recatada e folgada, para levar confortavelmente as proeminências da gravidez, pela sua cor escura, afirmava nela o viço e a beleza de sua juventude. Mas antes de dedicar tempo a ela, Antonia embrulhou queijo em um pano úmido e embalou em vidros os figos confeitados que tinha deixado refrescar na panela na noite anterior. Era cedo e aproveitou para adiantar alguns trabalhos antes de ir-se em procissão domingueira à igreja. Baixou a mesa aderida à parede e pediu a Angelito que recolhesse os pés; ao lado do banco estava a caixa grande, onde guardava as toalhas e os guardanapos. Estendeu o tecido sobre a mesa, dispôs tudo rapidamente, enxugou as mãos no mandil, e subiu os degraus ao soalhado do dormitório para acordar com um beijo o marido e Gonzalo. Angelito não perdeu nenhum lance. Ele já não estava com frio. Viu sua mãe se mexer displicente e animada e isso o contentou muito. Decidiu se levantar e provar sorte, quem sabe a perna não o incomodaria mais.

 

 

 

2. Refere-se a códigos antigos de vestimenta e comportamento em Galícia. (N. do T.)
3. Assim era chamada a pessoa que voltava rica de América. (N.do T.)
4. Cabeça de porco defumada e salgada, em Galícia (N.do T.)

 

Resfriados

 

A terra cheirava a musgo, à chuva de inverno. Sobre as urzes emaranhadas, as florzinhas de jara1 e as folhas mortas espargidas ao pé dos carvalhos, pinheiros e castanheiros, o menino deslizou de nádegas até o rio. No declive do terreno sempre era sombra. O bosque denso permanecia solitário ao entardecer. Ergueu-se e tirou a camisa, a calça de lã e os folgados calções de lenço branco. Depois, atirou perto as alpargatas que se ajustavam com fitas e entrou n’água. Com algumas braçadas alcançou a outra margem, porquanto o Neira se estreitava naquela curva, ao despenhar–se por uma cavidade repentina. Deixava o silêncio e a torrente cair sobre seu corpo; aliviavam seu cansaço. Perdia a noção do tempo enquanto olhava para cima, entre os galhos da árvore, por onde a claridade passava furtivamente e as nuvens se entrançavam, passavam, voavam, esvaiam.

Ansiava essa paz fresquinha, muda e serena. Ah! Se sua mãe, dona Antonia, o visse assim daria uma bronca tremenda nele:

—Mal se despede o inverno e já estás tomando banho na corrente? Não vês, meu filho, que podes apanhar um resfriado ou uma tuberculose, Angelito? Louvado seja Deus e livre–nos dessa desgraça – diria entre a raiva e a aflição, erguendo os braços para rogar que a predição não se cumprisse.

—Não, ela ainda notou a minha falta – disse a si mesmo.

Ele sabia que se demorasse até o anoitecer se inquietaria. Imaginou, então, sua mãe junto ao fogo, abanando a lenha e preparando o cozimento com que se aqueciam no jantar, trabalhando com o velho fuso e a roca quase em frangalhos para fiar lã e linho, tecidos utilizados depois para coser as colchas rematadas com pontas bordadas. Ela também passava horas a fio branqueando a roupa com água de cinzas. Sempre fazia isso no tronco do castanheiro esburacado. As telas mais apreciadas eram as de Padrón, e as rendas, as fabricadas nas imediações de Costa de la Muerte, em A Coruña. Os viajantes traziam a mercadoria pelos caminhos de Santiago aos estabelecimentos improvisados nas aldeias, às vendas, às romarias e às feiras no mercado.

Antonia era fornida e boa, com uma estampa imponente e uma saúde aparentemente à prova de tristezas. Ela foi obrigada a trabalhar como ama-de-leite em Madri após o nascimento de um de seus filhos. Os tempos eram muito difíceis, ela mal podia suportar o sacrifício de ir longe, onde as moças robustas eram vistas ideais por “pascer o capim do oeste da Península”, e isto queria dizer que aleitariam proveitosamente uma criança. A verdade: eram tratadas como animais. Lá, onde eram naturais e sensíveis, foram consideravam rústicas ou indiferentes.

Ela, todavia, não teve tanta má sorte. Os que a contrataram, sempre foram generosos e agradecidos. Mesmo assim, vestida com as galas de quem trabalha para família rica, em um daguerreótipo de estúdio, seu rosto tinha uma expressão adusta e lânguida, como se suportasse a duras penas o sofrimento de um ofício doloroso e, ademais, mal visto. Na imagem, apoiava o antebraço em um sólido atril de madeira trabalhada em relevo, sobre o qual se derramavam rosas de um vaso decorado com florestas, um costume imposto aos retratados pelos artistas perdidos atrás do fole da caixa escura e a fumaça de uma súbita iluminação assustadiça.

Antonia vestia um traje escuro de gola alta e mangas compridas, enfeitado com rendas, laços e babados. Em uma mão segurava um lenço, e na outra, uma sombrinha. O cabelo preso em coque no alto da cabeça e algumas mechas caindo sobre a testa denotavam que cuidava de sua aparência com esmero; os brincos longos davam um leve detalhe de faceirice, mas apesar de todos esses primores e o donaire da estampa, ela se via triste e séria no daguerreótipo.

Antonia sentia profundamente e como própria a humilhação vivida pelas moças reunidas na Plaza de Santa Cruz, na capital vozeando a abundância leiteira de seus peitos até conseguir um bom postor. Os olhares de esguelha que as seguiam mal continham desprezo e zombaria, sem compreender quão desesperada teria sido sua necessidade, a ponto de levar as aldeãs ao centro do mercado mais triste, longe de seus filhos recém-nascidos “anjinhos de Deus!”, da simplicidade dos dias provincianos, envoltas na roda-viva ruidosa e inclemente.

Antonia tinha vergonha dos ditados com aleluias, aquelas folhas de papel onde apareciam vinhetas quadradas em oito filas, com gravuras e textos para relatar histórias cotidianas. Que sufoco indignado o seu sabendo que a gente pregoava: “Por ouro tudo se faria/ se dá o próprio sangue /que uma ama-de-leite o diga”. Alguém lhe mostrou a folha, mas ela não saberia dizer quem, naquele instante sua vista se nublou entre o pranto e a coragem enquanto o mensageiro lia sem desgrudar os olhos daquele papelzinho endiabrado. Unicamente a consolava a certeza de que existiam almas caritativas que reconheciam nelas a honradez, a humildade e seu temor a Deus. Ademais, aliviava-a que havia muitas famílias galegas que pensavam assim. Após essa experiência, era natural que fosse amorosa com seus filhos, muito mais que as que nunca tinham vivido entre a laceração e o trabalho. Morria pelas crianças de seu coração, em um afã desmesurado de aconchegá-las ao peito. Agasalhava-as, fazia sua vontade, beijava e acariciava-as com muita ternura. Era severa consiga mesma e chorava e suspirava sem consolo às vezes até dormindo.

Tempos depois, quando Antonia já tinha suportado a dor de perder sua pequena filha de dois anos e meio: María Antonia Dominga, alguém asseverou que o sofrimento consumira não só a alma, mas também sua força física. María Antonia, sua primeira filhinha, nasceu no regozijo cálido e colorido da primavera, às seis da tarde de 18 de maio de 1874, e foi-se embora como uma desoladora ventania em dezembro de 1876. Era a primeira adversidade do jovem casal que fora unido em matrimônio por dom Ramón López Neira, padre da única igreja paroquial de San Pedro de Láncara, onde se realizou a cerimônia de casamento após terem aprovado o exame da Doutrina Cristã, segundo ordenamento da Santa Madre Igreja no Santo Concílio de Trento e, por sua vez, o consentimento e conselho requeridos pela Lei vigorante.

O casamento aconteceu no verão de 1873, aos dezesseis dias do mês de agosto; Manuel de Castro Núñez tinha 24 anos e a moça escolhida, 18. Aquela manhã, os sinos nas duas torres altas da igreja tangeram quebrando o silencio da casa paroquial contígua e a paz dos sepulcros próximos. O padre, com os óculos que escorregavam até a ponta do nariz, secando com um lenço de seda o suor na sacristia abafada, cumpriu todos os sacramentos de rigor e deu sua benção – e por seu intermédio a de Deus – à união de Manuel e Antonia. Ela levava no cabelo uma grinalda de flores silvestres que tinham sido apanhadas na orla do Neira, e sua pele, saudável, mas pálida, parecia a de uma senhorita que tinha crescido à sombra dos recolhimentos e dos altos e úmidos portões: resguardo dos interiores de Santiago de Compostela, labiríntica e sedutora cidade onde proliferavam as beatices desde tempos imemoriais, a paixão pelo Apóstolo, o musgo das sombras frias e as discussões políticas.

—Envelheceu cedo – asseveravam as vizinhas ao falarem de Antonia.

Angelito não percebia essa languidez de espírito, e menos seu cansaço quando passava os dias de um afazer a outro. Notava seu desvelo por eles e a ânsia de Antonia de buscar amparo nos braços de seu marido Manuel quando se sentia abatida. É, a tinha visto refugiar-se em seu pai; colocar a cabeça no seu peito por um bom tempo e em silêncio, ou conversar com ele sobre os temas quase sempre imprevistos da agricultura: questões de temporadas, luas, sementes e chuvas. Angelito não conseguia entender suas conversas. Seus pais tinham crescido entre gente de campo sábia em fecundar a terra. Nesse trabalho depositavam todas suas esperanças de prosperidade. Com as colheitas podiam manter a casa, alimentar os filhos e pagar os aluguéis. Ela dedicava tempo às oliveiras, vinhedos e macieiras. Antes de se dissiparem as sombras da noite já estava podando e removendo as raízes. Punha os olhos nas plantações de legumes e batata com o desejo de que a colheita fosse boa para desfrutá-los nas refeições. Sem dúvida, era costume familiar ancestral buscar, com as próprias mãos, a comida que se colocava na mesa cada dia. Todos davam de comer aos animais sem resmungos, qualquer um de seus filhos cumpria essa tarefa com esmero, até a caçula, apelidada de “foguete” porque era infatigável, dada a escapulir, se divertia jogando grãos de milho às galinhas e às pombas.

Angelito não conseguia se lembrar da morte de sua irmã María Antonia Dominga em 1876. Ele tinha apenas um ano de idade. Tinha nascido na noite de 4 a 5 de dezembro de 1875, um dia úmido e frio. Em troca, recordava o nascimento de seu irmão Gonzalo Pedro. Ele estava a ponto de completar seis anos. Aquele dia 21 de outubro de 1881 foi tremendo, vivido em sobressalto até as nove da noite, quando se escutou o choro do menino no quarto contíguo ao principal, onde, junto à lareira, o pai de um só gole esvaziou um cálice de vinho e deu graças ao Senhor porque tudo tivesse terminado felizmente. Celebrou na companhia do sacristão da paróquia, um político do vilarejo e o padrinho. Angelito pensava nisso e sentia muito alegria, mas também um pulo na boca do estomago.

Recordou o tamborilar dos granizos no teto da casa, essa mesma madrugada. Ao amanhecer, o dia mal se vislumbrava em um céu murcho, um véu cinza afastou a sorte de uma manhãzinha de sol.

—Diabos! Como demoram os outros! – praguejou.